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Crônica da Placa Preta

[dropcap]D[/dropcap]esde que se entendia por gente, Hans sonhava ter um Fusca. Sonho de criança, da época em que seu tio-avô — um alemão que desembarcou no Brasil depois da II Guerra — o levava sempre a passear. Isso nos idos de 1958. Fazia tempo…

Mas não servia um Fusca qualquer. De jeito nenhum! Tinha que ser um igualzinho ao do seu tio-avô, com aquelas janelinhas traseiras pequenas e dividas ao meio, os chamados “Split”. Aquele mesmo, entre os primeiros a chegar encaixotado ao Brasil.

Sua busca durou uma eternidade! Os Volkswagens desta época não são nada fáceis de encontrar hoje em dia. E os poucos que restam custam mesmo os olhos da cara. Disputados a tapa pelos colecionadores no mundo inteiro.

Uma pitangueira insistia em brotar em um dos porta-luvas (sim, porque estes Fuscas mais antigos possuíam dois).

Durante anos Hans, que não era rico, economizou para realizar sua fantasia infantil. E como a sorte ajuda a quem realmente se empenha, um velho amigo de seu pai, dos tempos ainda do seu tio-avô, soube de sua busca e lhe indicou um “Split” cujo proprietário queria se desfazer “para desocupar lugar” em sua propriedade. O carro estava em péssimo estado: o motor não era ligado fazia uma década, a fiação havia sido roída pelos ratos, dois vidros estavam quebrados, muitas partes da lataria foram devoradas pela ferrugem. Interior? Não havia sobrado nada. Uma pitangueira insistia em brotar em um dos porta-luvas (sim, porque estes Fuscas mais antigos possuíam dois).

Hans estava radiante e nem se importou com seu lastimável estado. Afinal, tratava-se de seu Volkswagen 1951! E o preço estava bastante em conta. Sobraria algum para dar a largada à restauração, que teve início imediatamente.

Willys Rural 4X2 1968
R$ 80.000,00

Chevrolet Tigre 1946
R$ 170.000,00

R$ 45.000,00

BMW 740i 1997
R$ 95.000,00

R$ 25.000,00

FNM 2000 JK 1963
R$ 190.000,00

VW Fusca 1300 1968
R$ 33.000,00

R$ 45.000,00

Metalúrgico aposentado, Hans não teve dificuldades de ele mesmo cuidar de toda a funilaria do castigado 51. Trabalho de fundo de quintal, é verdade, mas realizado no mais absoluto capricho e seguindo rigorosamente os padrões originais. A essa altura, toda a mecânica já havia sido refeita. Tudo com o maior sacrifício!

Refeita a bela pintura — preta, como convém a um clássico 51 — numa oficina especializada, já que nesta hora não dá mesmo para economizar, chegou a vez do acabamento. A fase mais complicada no projeto de Hans. As peças são raras, caras e muitas delas devem ser inclusive importadas. Só de casemira alemã para os estofados nosso herói gastou algumas centenas de Euros. Sem falar em um par novo de setas estilo “bananinha”, rodas aro 16, tapeçaria em buclê… tudo como manda o figurino. Afinal, o 51 ostentaria no futuro as famosas Placas Pretas. Mais do que merecidas, depois de tanta labuta!

Hans não desanimou, confiava em seu velho 51 e não iria desistir das Placas Pretas na primeira tentativa. Nada disso!

Depois de quase dois anos, o 51 estava finalmente pronto. Faltavam alguns poucos detalhes, imperceptíveis a um leigo, mas que poderiam pesar na hora da vistoria para o Certificado de Originalidade. Mas Hans apostava na qualidade da restauração de seu 51 e tratou logo de se inscrever em um clube. Escolheu um especializado em VW e com fama de rigoroso nas avaliações.

Mas as coisas não foram como era de se esperar na vistoria do 51. Alguns detalhes, bobos na opinião de Hans, tiraram preciosos pontos do Split, fazendo com que alcançasse apenas 76 pontos, ao invés dos 80 necessários. Hans não desanimou, confiava em seu velho 51 e não iria desistir das Placas Pretas na primeira tentativa. Nada disso! Concentrou-se em trocar ou melhorar os itens que prejudicaram seu carro e marcou nova vistoria no clube.

Desta vez nada poderia dar errado! E não deu mesmo: o 51 obteve agora honrosos 92 pontos e recebeu seu Certificado de Originalidade, tornando-o apto a receber as Placas Pretas como um legítimo veículo de coleção. Hans era só orgulho!

Era chegada a ultima fase da jornada do 51: encaminhar ao Detran toda a papelada para a mudança na cor das placas. Procedimento demorado, mas que transcorreu sem maiores sobressaltos.

Do sonho de criança, lá atrás nos longínquos anos 1950, até hoje, na realização de seu desejo, Hans havia aprendido a esperar, esperar e a não conhecer o sabor da derrota nunca. E havia valido a pena. O 51 estava ali na sua frente, lindo como no dia em que veio ao mundo, quer dizer, saiu da linha de montagem, lá na Europa. Testemunha de uma época, cheio de dignidade com suas Placas Pretas.

Domingo de sol, dia de encontro de veículos antigos. Lataria polida, pretinho nos pneus, interior aspirado, adesivos fixados nos vidros, camiseta com estampa de Fusca, boné na cabeça, lá vai Hans transbordando de satisfação conduzindo seu Split com todo cuidado para não sujar. O mundo enfim iria conhecer o 51!

Ao chegar, nosso personagem é encaminhado ao setor destinado aos Fuscas (que são sempre maioria nos eventos) e ao sub-setor exclusivo aos portadores de Placas Pretas. Sua vaga já estava reservada: entre um 1963 “fantasiado” de Herbie, o personagem do filme e um 1968 preto e branco, cuja pintura extravagante, ridícula e inexistente no padrão Volkswagen de qualquer época ou país chamava a atenção dos visitantes.

O encontro terminou mais cedo para o 51! Decepcionado, desiludido, inconformado, arrasado mesmo, só restou a Hans voltar para casa, mas não antes de parar no boteco da esquina e pedir uma dose dupla de 51.

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Nota: Apesar de ser um texto de ficção, os Fuscas com Placas Pretas irregulares citados na crônica existem e circulam normalmente pelos encontros de veículos antigos.

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