Alexander Gromow

Salvo por uma plaqueta

As fábricas costumam festejar os seus recordes internos, e antigamente isto era bem mais frequente; em alguns casos flores, guirlandas e cartazes marcavam o evento que era registrado em fotos que iam para os anais da fábrica e foram montando as suas histórias de sucesso.

Recordes de produção no início da era Nordhoff em Wolfsburg

Heinz Heinrich Nordhoff assumiu a fábrica de Wolfsburg em 01 de janeiro de 1948, e logo foi colhendo seus recordes de produção de Fuscas e os primeiros de sua era receberam um destaque especial; destaque para o uso da mesma logotipia nos três casos:

Destes carros o carro que até hoje é preservado pela Volkswagen, abaixo uma foto dele que tirei em 2015 no museu multimarcas Zeithaus, da Autostadt:

O milionésimo Fusca produzido pela Volkswagen que deixou a linha de montagem da Fábrica de Wolfsburg no dia 5 de agosto de 1955 (Foto: autor)


Em alguns casos especiais estes recordes extrapolavam os muros da fábrica e eram divulgados mundo afora sendo usados como um diferencial competitivo, como foi, por exemplo, a quebra do recorde de fabricação do Ford Modelo T. Em 17 de fevereiro de 1972, o 15.007.034º Fusca da Volkswagen saiu da linha de montagem, quebrando um recorde na produção mundial de carros detida por mais de quatro décadas pelo icônico Modelo T da Ford Motor Company, que foi produzido de 1908 a 1927:

Acima, foto que circulou a terra com um Ford Modelo T comboiado por Fuscas (Fonte: Volkswagen AG). Abaixo, Rudolf Leiding discursa durante a festa da quebra do recorde que era do Ford Modelo T (Fonte: Volkswagen AG)

Mas, na maioria das vezes, os carros que quebravam as cifras entravam no fluxo normal de vendas e se perdiam dentre os carros comercializados, perdendo todo aquele glamour efêmero do momento da quebra do recorde. Alguns foram preservados em museu, mas poucos.

No caso que vamos relatar uma feliz coincidência e a providência de alguém na linha de montagem da fábrica de Emden, cidade portuária alemã para onde foram deslocadas algumas linhas de fabricação de carros para exportação – iniciando pelo Fusca, fez uma mágica acontecer. O renascer de um Fusca que foi especial em seu tempo e que depois voltou ao seu “local de nascimento” numa data muito importante.

Anos depois, quem fez esta história acontecer foi um conhecido restaurador, customizador, colunista e marchand de carros Volkswagen, em especial os arrefecidos a ar, o Randy Carlson, nascido em 1966 in Whittier, sul da Califórnia. Ele sempre esteve no centro da SoCal Car Culture – ou por extenso Southern California’s Car Culture (Cultura do Carro do Sul da Califórnia) um forte movimento preservacionista de carros antigos. Atualmente ele mora em Aguanga, também na Califórnia.

Por volta de 2014, o Randy Carlson, pesquisando carros Volkswagen na internet se deparou com uma oferta intrigante: um Fusca 1966 vermelho, bem desbotado pela ação do tempo e que tinha um item especial que chamava a atenção. Na parede atrás do estepe este carro tinha uma plaqueta oval de bronze que dizia ser o centésimo milésimo Fusca fabricado em Emden; esta plaqueta aparece na imagem de abertura desta matéria.

O Randy Carlson ao lado do Fusca 1966 protagonista desta história (Foto: Randy Carlson)


Outro indício sobre o carro ser o centésimo milésimo produzido em Emden é o número 100.000 escrito a mão com lápis marcador em uma das dobradiças do capô dianteiro, provavelmente por um inspetor de qualidade, como mostra a foto abaixo:

Inscrição em dobradiça do capô dianteiro


A história deste carro foi muito “movimentada” segundo as pesquisas que o Randy andou fazendo. O carro deixou a linha de montagem no dia 11 de janeiro de 1966, tendo sido fabricado especificamente para o mercado americano. Foi embarcado num navio no porto de Emden, situado perto da fábrica, como mostra a ilustração abaixo:

Marcador vermelho: “Volkswagen Werk” – Fábrica; seta vermelha: gigantescas áreas de estocagem de carros a céu aberto; seta amarela: porto especializado para embarque de veículos em navios tipo roll-on/roll-off (os carros entram e saem rodando do navio); seta azul: braço de mar, saída para o Mar do Norte (Fonte: Google Maps)


O carro foi vendido zero quilômetro na área de São Francisco e passou seus primeiros anos no lendário bairro Haight Ashbury, o epicentro do movimento Hippie.

O Bairro Haight-Ashbury, em São Francisco, Califórnia, foi o berço de movimentos de contracultura dos anos sessenta. Haight-Ashbury tinha lojas especializadas em parafernálias usadas no consumo de maconha e tabaco e itens relacionados à Cultura Canabis e outras contraculturas. Abrigava comunidades anarquistas. Foi o centro de música tipo rock psicodélico. O Festival de música pop de Monterey sedimentou a tradição de música psicodélica como tendência principal em Haight-Ashbury.   A fama do bairro atingiu seu auge, tornando-se o refúgio de vários artistas de rock psicodélico e grupos da época. Os membros do Jefferson Airplane, do Grateful Dead e a cantora Janis Joplin, todos moravam por ali.  Fazendo fronteira com o Golden Gate Park, o bairro apresenta muitas casas vitorianas coloridas e bem preservadas.

Algumas casas vitorianas preservadas até hoje de Haight-Ashbury (Fonte: Wikipédia)


O segundo dono do carro estava muito enfronhado nos acontecimentos de Haight-Ashbury e contou que deu carona à cantora Janis Joplin, assim como para o dançarino Fred Astaire que estava filmando um comercial na área, com o Fusca servindo de pano de fundo.

Ele manteve o carro por muitos anos e acabou saindo da cidade para iniciar uma fazenda orgânica, longe das festas cheias de drogas e comportamentos selvagens. Algum tempo depois o Fusca apresentou problemas de motor e acabou ficando estacionado no pátio para se aquecer ao sol. Um entusiasta de Volkswagens da área ficou de olho no carro durante os próximos 25 anos, questionando e implorando ao dono para vender. Eventualmente, um acordo foi feito e o carro foi levado para Oakland, na Califórnia.

Em seguida, uma mudança nas prioridades exigiu a venda do carro e os anúncios foram publicados nos sites Craigslist e TheSamba. Randy, que tinha o costume de varrer a internet a busca de Volkswagens, localizou este carro on-line vários meses antes de fazer uma oferta e, surpreendentemente, o carro não tinha sido vendido. Depois de entrar em contato com a Volkswagen na Alemanha para verificar a história do Fusca e receber a confirmação que era realmente o 100.000o carro produzido em Emden, ele acertou o negócio e arranjou para que o carro fosse entregue na oficina dele.

Uma foto da comemoração do 100.000o Fusca fabricado em Emden também foi enviada pela Fábrica. O carro ostentava uma placa com o nome da fábrica (Werk Emden – Fábrica de Emden) e o número 100.000; uma guirlanda verde decorava o carro acompanhando o perímetro do capô dianteiro e flores acompanhavam o arranjo festivo:

No dia 11 de janeiro de 1966 a fábrica de Emden parou e os funcionários comemoraram o 100.000º Fusca, marca que consolidou a então nova fábrica (Fonte: Volkswagen AG)


O carro estava bastante depredado quando chegou, muitos anos abandonado ao sol causaram uma extensa queima na pintura, além da limpeza do carro ter sido negligenciada por vários anos como veremos adiante:

Acima, o carro sendo descarregado na oficina do Randy (Foto: Randy Carlson). Abaixo, agora ele até ganhou um teto. No geral o carro estava bem completo (Foto: Randy Carlson)

“Arqueologia” com base no que ficou no carro em tantos anos

Quando o Randy começou a limpar o carro encontrou indícios da sua vida em Haight-Ashbury, além de verificar o abandono do carro, que não foi tratado como merecia. Algumas fotos do trabalho de “arqueologia”:

Acima, achados no chão do carro uma concha, uma vela de ignição velha, duas travas e dois “tokens” dos Narcóticos anônimos (Foto: Randy Carlson). Abaixo, Um isqueiro vazio e mais um “token” (Foto: Randy Carlson)

Quando o carro foi descoberto, havia restos daqueles dias selvagens sob os assentos e nos cantos profundos. “Tokens” dos Narcóticos Anônimos são um exemplo disto, são um tipo de medalhas que marcavam o tempo que o associado tinha ficado “limpo”; abaixo detalhes destes “tokens”, mostrando suas frentes e versos:

Acima, frente de dois “tokens” cada um com suas siglas e palavras de incentivo (Foto: Randy Carlson). Abaixo, No verso frases de apoio; estes “tokens” eram de duas associações antinarcóticos diferentes (Foto: Randy Carlson)

O Randy ficou na dúvida do que fazer, dar um “tapa”, consertar tudo que estava com defeito e deixar a pintura como estava, talvez com um leve polimento para tirar a sujeira e fazer ressaltar a pátina de tantos anos. A outra alternativa seria uma restauração total trazendo o carro para as suas condições de fábrica. Venceu a alternativa de não fazer a restauração radical.

Seguem algumas fotos do início da limpeza do carro, a contar pelo estado da bola do câmbio o trabalho foi pesado:

Terminando o serviço no nível que ele queria e com a parte mecânica toda revisada,  Randy passou a participar de encontros, e em alguns deles ele simulava a cerimônia do centésimo milésimo Fusca de Emden, com a guirlanda e um cartaz copiado daquele que se via na fotografia que a fábrica de Wolfsburg enviou:

A cor verde que emergiu no capô dianteiro foi motivo de discussão e, ao que tudo indica, é o reaproveitamento do capô de outro carro (Foto: Randy Carlson)


O Randy manteve o carro por um ano e o vendeu para Larry Marchant que acabou fazendo uma restauração completa e muito custosa do carro. Algumas fotos desta incrível restauração (Fotos: Larry Marchant):

Estas fotos são só uma amostra, mas para quem quiser entrar no detalhe desta reforma pode ver 91 fotos que eu carreguei num álbum do Flickr.

Em 2014 aconteceu mais uma coincidência, o Larry Marchant enviou fotos do seu Fusca reformado para a Volkswagen alemã e a Fábrica de Emden estava completando 50 anos. Este centésimo milésimo Fusca era significativo para as festividades de aniversário desta fábrica. Disto tudo resultou que o Larry decidiu emprestar o seu Fusca para que ele participasse das festividades em Emden!

O 100.000o Fusca volta para a Alemanha para participar das festividades de 50 anos da Fábrica de Emden. A seu lado o último Fusca produzido em Emden em 1978 – dois carros icônicos (Foto: Larry Marchant)


Um jornal local reportou a participação do Fusca do Larry nas festividades de Emden, publicando até uma foto dele junto a seu carro:

A legenda da publicação diz: “Emden Schätzchen in den USA entdeckt” – “Queridinho” de Emden descoberto nos EUA (Fonte: Larry Marchant)


Mas a “vida atribulada” deste Fusca não acabou por aí. Pouco tempo depois o Larry publicou o seguinte no site eBay: “Infelizmente, devo vendê-lo como parte de um ACORDO DE DIVISÃO DE PROPRIEDADE DE DIVÓRCIO emitido pelo Tribunal que me obrigou a vender meus carros de coleção ou a comprar a parte de minha de ex-esposa. Uma compra neste momento não é possível, então eu tenho que colocá-lo de volta no mercado. Quem é colecionador ou quer começar uma coleção, este é o seu carro! Ele está em condições excepcionais (mint conditions) e está totalmente documentado.”

Depois de algum tempo o carro foi vendido para um colecionador do estado de Oregon, onde ainda se encontra.

 


Os dados deste Fusca são:

  • Modelo 113, versão para os EUA
  • Produzido em 11 de janeiro de 1966
  • Motor de 1,3 litros, 40 hp / 29 kW
  • Cor código L456 – vermelho rubi
  • Estofamento “platina” – couro artificial branco
  • Pneus com faixa branca

De um marco incrível em seu “nascimento” com grande festa, para uma longa vida selvagem nos dias hippies cheios de fumaça, depois se aposentar em uma fazenda e ficar muitos anos assando sob o sol da Califórnia. Então foi descoberto, restaurado à perfeição absoluta para depois voltar para casa, para a fábrica na Alemanha participando de uma celebração mais uma vez. Este Fusca tem uma história incrível para contar como poucos no planeta.

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Alexander Gromow

Ex-Presidente do Fusca Clube do Brasil. Autor do livro EU AMO FUSCA e compilador do livro EU AMO FUSCA II. Autor de artigos sobre o assunto publicados em boletins de clubes e na imprensa nacional e internacional. Participou do lançamento do Dia Nacional do Fusca e apresentou o projeto que motivou a aprovação do Dia Municipal do Fusca em São Paulo. Lançou o Dia Mundial do Fusca em Bad Camberg, na Alemanha. Historiador amador reconhecido a nível mundial e ativista de movimentos que visam à preservação do Fusca e de carros antigos em geral. Participou de vários programas de TV e rádio sobre o assunto. É palestrante sobre o assunto VW com ênfase para os resfriados a ar. Foi eleito “Antigomobilista do Ano de 2012” no concurso realizado pelo VI ABC Old Cars.

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