Alexander Gromow

Mentira tem pernas curtas… mas só para quem aceita a verdade…

Existem coisas que, olhando aqui do Brasil, são difíceis de aceitar, como os fatos que vamos relatar nesta matéria. Mas antes de mais nada é necessário passar algumas informações que vão montar o cenário dos acontecimentos que levaram a colocação errônea de um logotipo Karmann num VW SP2.

Um pouco da história da Karmann

Em 1901 foi fundada a Wilhelm Karmann GmbH, que foi uma empresa fabricante de automóveis e carroçarias automobilísticas (carrozziere) com sede em Osnabrück, a terceira maior cidade do estado federal alemão da Baixa Saxônia, que se destacou como fabricante do VW Karmann Ghia.


Ilustração: Olhando para o passado, abaixo a foto de uma “carruagem de caça” que é a peça mais antiga que fazia parte do acervo do Museu da Karmann em Osnabrück (Fonte Site Zeitliste):

FNM 2000 JK
R$ 120.000,00

Alfa Romeo 2300 Ti4 1985
R$ 100.000,00

MG TD 1953
R$ 190.000,00

Ford Escort XR3 1992
R$ 29.900,00

R$ 45.000,00

Ford LTD 1978
R$ 86.000,00

BMW 2002 Tii 1972
R$ 220.000,00

Willys Rural 4X2 1968
R$ 80.000,00

VW Fusca 1300 1968
R$ 33.000,00

Mas esta empresa começou com a produção de veículos para tração animal, carruagens e carroças, e de carroçarias para os fabricantes de chassis motorizados da época.


Ilustração: Exemplo de carro cujo chassi foi produzido pela empresa Dürrkopp da cidade de Bielefeld na Alemanha que foi encarroçada pela Karmann em 1902 (Fonte Site Zeitliste):


Ilustração: A Karmann no trabalho conjunto com o fabricante Adler que durou de 1932 a 1934. O carro da esquerda é um Adler Primus cabriolé. À direita o estande da Karmann na IAA – Exposição Internacional de Automóveis de Berlim de 1933; na época eram realizados concursos de beleza entre os carros expostos. A vitória em um destes concursos fomentou o trabalho conjunto com a Adler (Fonte Site Zeitliste):


Ilustração: A fábrica tinha sido severamente danificada pelos ataques aéreos dos aliados durante a II Guerra Mundial. Um ponto de virada na existência da Karmann ocorreu em 1949: o trabalho conjunto com a Volkswagen que resultou no grande sucesso do Fusca cabriolé que foi fabricado até 1980 (Fonte Site Zeitliste):

Em tempos mais recentes, além da produção e desenvolvimento de veículos automotores completos, em especial conversíveis e cupês com base em veículos de outros fabricantes, a empresa criou principalmente sistemas de tetos (conversíveis) e ferramentas grandes (usinagem de moldes para estamparia) para outros fabricantes de veículos.


Ilustração: Todos conhecem o Fusca cabriolé, pois vários deles foram importados para o Brasil, mas certamente o equivalente alemão do DKW Belcar brasileiro não é tão conhecido assim, e aqui está a versão igualmente feita pela Karmann (Fonte Wikipedia):

Um total de aproximadamente três milhões de veículos foram fabricados por Karmann.

Em 2009 foi fundada a Volkswagen Osnabrück GmbH.  Em 2010 a Karmann declarou falência e a Volkswagen AG assumiu boa parte da massa falida, afinal de contas ela precisava de uma estrutura que permitisse a continuidade da produção de veículos conversíveis e outros especiais que são produzidos em séries pequenas – produção esta que não seria possível nas demais fábricas do grupo. E em 2011 foi iniciada a produção pela Volkswagen, nas antigas instalações da Karmann, do VW Golf VI Cabriolé, do Porsche Boxter em setembro de 2012 e do Porsche Cayman em novembro de 2012, etc.

Foi assim que o acervo do antigo Museu da Karmann foi integrado ao VW Classic de Osnabrück, que ao lado do VW Classic de Wolfsburg compõem o acervo histórico da Volkswagen AG.

A Karmann-Ghia do Brasil Ltda foi fundada em 1959, em São Bernardo do Campo (SP), como subsidiária da Wilhelm Karmann GmbH da Alemanha. A vinda da Karmann para o Brasil, na fase inicial da nossa indústria automobilística, foi de fato motivada pela chegada da Volkswagen.


Ilustração: Vista aérea da fábrica da Karmann-Ghia do Brasil em São Bernardo do Campo, às margens da Rodovia Anchieta, perto da Fábrica da Volkswagen do Brasil (Fonte Divulgação):

As duas firmas, porém, teriam vidas autônomas, e a própria tramitação junto ao GEIA para a nacionalização do cupê Karmann-Ghia foi conduzida pela encarroçadora, e não pela Volkswagen. Comercializado pela rede autorizada VW, o cupê foi lançado em 1962, acompanhado do conversível, em 1968. Em 23 de novembro de 2016 a A Karmann-Ghia do Brasil Ltda teve a falência decretada.

Focando no assunto específico desta matéria

Agora vamos ao ponto. Acho que todos devem ter notado na fotografia de abertura da matéria a flecha que eu coloquei no VW SP2. Ela está indicando que foi acrescentado um emblema da Karmann na lateral dianteira esquerda deste carro; que o VW Classic de Osnabrück trouxe para a festa de aniversário de 10 anos do “Karmannfreunde Bayern e.V.” (Clube dos Amigos da Karmann da Bavária), realizada na cidade de Würzburg nos dias 7 e 8 de julho de 2018.


Ilustração: A VW Classic de Osnabrück trouxe vários carros para este evento em um moderno caminhão cegonheiro que fica totalmente fechado, aumentando a proteção dos veículos transportados; abaixo o detalhe deste VW SP 2 ainda dentro do caminhão (Fonte Michael Mörsinger):


Ilustração: A foto seguinte mostra o detalhe deste logotipo Karmann colocado no para-lamas dianteiro esquerdo deste VW SP2, aplicando zoom na foto de abertura da matéria (Fonte Michael Mörsinger):


Ilustração: Abaixo a foto de divulgação do site do VW Classic que mostra o tal logotipo Karmann, que também está indicado com uma flecha vermelha (Fonte Site VW Classic):

Este detalhe, para quem conhece este tipo de carro, está obviamente errado e deflagra uma onda de informações igualmente erradas para quem não conhece a história — induzindo que o VW SP2 era um carro da Karmann Ghia do Brasil, e não da Volkswagen do Brasil, como seria o correto.

Ao que tudo indica a colocação pode ter ocorrido por parte do pessoal da Karmann de Osnabrück, mas ainda não se sabe com exatidão como e quando este logotipo foi colocado. Observando o detalhe da foto em close se nota que o logotipo Karmann foi aparafusado no VW SP2 sem que tivesse sido feito o berço para recebe-lo como ocorre nos carros Karmann-Guias tipo 14 alemães (e seus congêneres brasileiros também).


Ilustração: Foto de um carro Karmann Ghia tipo 14 alemão que participou do evento do “Karmannfreunde Bayern e.V.”, nesta foto é possível ver o berço estampado no para-lamas para receber o logo Karmann, cuja face exterior fica alinhada com a superfície do para-lamas – uma curiosidade é que nos automóveis Karmann Ghia deste tipo o emblema é colocado no para-lamas direito e no tal VW SP2 foi colocado no esquerdo, seria algum tipo de código? (Fonte Michael Mörsinger):


Ilustração: Além deste emblema, também foi colocada uma plaqueta rebitada na soleira da porta do motorista, esta foto também é do site VW Classic. Esta plaqueta é motivo de grande irritação de quem conhece a história e de muitos proprietários de VW SP2 (Fonte Site VW Classic):


Ilustração: Certamente uma ideia boa acaba por ter vários pretendentes a serem seus “pais” e a Karmann de Osnabrück, num arroubo do que poderia ser classificado de falsidade ideológica1, “assumiu a paternidade do VW SP2” em um livro chamado “Karmann Cars” (em inglês – primeira edição março de 2005 – ISBN: 3613026120 – Editora Motorbuch Verlag) cuja página 90, relativa a este carro, reproduzo abaixo (Fonte acervo do autor)

Traduzindo a parte inicial do texto acima temos:

Rudolf Leiding – Gerente Geral da Volkswagen do Brasil de 1968 a 1971 e Presidente do conselho da Volkswagen em Wolfsburg de outubro de 1971 até o início de 1974 lançou o desafio (de fazer o VW SP2). E a Karmann assume o trabalho. Quando em 1972 a Karmann Ghia do Brasil Ltda iniciou a produção em série, a Karmann não se limitou a abordar somente o desenvolvimento do SP2, mas também a solução para uma exigência absoluta: manter os custos de produção o mais baixo possível, para tanto o maior número possível de componentes de outros modelos da Volkswagen teve que ser adotado. Daí surgiu o esportivo Coupé com motor montado na traseira da plataforma VW Tipo 3, cujo eixo dianteiro e motor também foram adotados.” (grifo meu)

O que está neste livro não se sustenta de maneira alguma. Nele a Karmann de Osnabrück assumiu a “paternidade” de um projeto e desenvolvimento do carro que foi feito integralmente pela Volkswagen do Brasil!

Para o projeto dos VW SP1 e VW SP2 foram envolvidos o Design, sob a liderança de Márcio Piancastelli, e a engenharia da Fábrica 1 (Anchieta) na definição do chassi, que foi o da Variant de primeira geração, e para o VW SP2 o conjunto motriz foi incrementado, que significou desenvolver o motor de 1.679 cm³ e 65 cv (Variant, 1.584 cm³, 54 cv), incluindo circuito de lubrificação diferente, e um par de pinhão e coroa mais longo, 3,875:1 (31:8 dentes), ante 4,215:1 (33:8 dentes) da Variant.

A Karmann-Ghia do Brasil foi apenas um subfornecedor especial e não fez o que a Karmann alemã afirmou no texto acima. Os principais componentes estampados e a estrutura base com suspensão e trem de força vinham da Volkswagen do Brasil. A carroceria, armada na Karmann Ghia do Brasil, tinha que voltar para ser pintada na VW do Brasil (o trabalho de pintura da Karmann-Ghia não atingia os padrões de qualidade da VW do Brasil). Então a carroceria pintada voltava para a Karmann-Ghia do Brasil para concluir a montagem.

Definitivamente foi um carro “puro-sangue” Volkswagen do Brasil, com design próprio e fabricação dos principais componentes, além da supervisão e o controle da qualidade do produto final!

Mas, infelizmente, ao que tudo indica esta “desinformação” se arraigou na Alemanha incluindo a própria Volkswagen AG.

No livro “Schatzkammer – Die wichtigsten Exponate der Sammlung des AutoMuseum Volkswagen” (Câmara do tesouro-Os exemplares mais importantes da coleção do AutoMuseum Volkswagen – em alemão e inglês – primeira edição em 2015 – ISBN: 978-3-667-10260-7 – Editora Delius Klassing & Co. KG), uma obra que serve como catálogo deste museu que foi coordenada pelo próprio Sr. Ebehard Kittler – então curador deste museu.

Ao dar uma olhada nesse livro o choque não foi pequeno, dentre outros problemas com a descrição de outros carros brasileiros deste museu, que não vem ao caso agora, a página 31 que fala sobre o VW SP2 apresenta erros clamorosos.


Ilustração: Reprodução da página 31 do livro “Schatzkammer” cujo texto é traduzido a seguir – quando esta foto foi feita o logotipo da Karmann ainda não tinha sido colocado (Fonte acervo do autor):

Aí vai a tradução da legenda em alemão desta página (a versão em inglês é um resumo disto) de um “livro oficial” da Volkswagen alemã:

SP2 1973

A Karmann do Brasil de São Bernardo do Campo construiu de 1972 a 1976 sob encomenda da Volkswagen o SP (“Protótipo Esportivo”) com carroçaria de forma “raçuda”. Foram fabricados 162 SP1 com motor de 1,6 litros do tipo 3 e 10193 SP2 com motor de 1,7 litros do tipo 4. A plataforma veio do brasileiro VW 1600 (“Brasília”). Na frente estavam freios a discos, com freios a tambor traseiros. O iniciador do projeto foi Rudolf Leiding, CEO de 1971 a 1975.”

Acho que não é necessário apontar os erros que constam deste texto, mas, como já foi explicado, não foi a “Karmann do Brasil” (que na verdade se chamava Karmann Ghia do Brasil)  que “construiu” o VW SP2, esta empresa foi só um mero subfornecedor de mão de obra especializada (com ênfase na montagem das carroçarias com uso de solda a estanho e a necessidade de ajustes demorados) e poucas peças. Tipo 3 e tipo 4 são denominações referentes a carros alemães. Afirmar que a plataforma usada foi a VW Brasília é o cúmulo do desconhecimento de causa, pois, como é sabido, a plataforma usada foi a do VW Variant. Um lamentável atestado de que o AutoMuseum Volkswagen se distanciou da realidade brasileira e entrou num mundo de ficção teutônico que só pode revoltar aqueles que prezam a história automobilística brasileira.


Ilustração: Este é um dos croquis de estudo do Marcio Piancastelli mostrando a compatibilização do VW SP2 com a plataforma do VW Variant (Fonte acervo do autor):

E a “coisa” não parou por aí e o desrespeito histórico continua a ocorrer.

Recentemente, no final de 2017, o setor de Marketing da Volkswagen AG terminou mais uma edição do “Lookbook”, neste caso o “Lookbook No. 3 Volkswagen Artwork”, que é uma coletânea de trabalhos de arte de inspiração VW, elaborado pelo designer Klaus Trommer. Ele desenhou gráficos em torno de Volkswagens históricos como Fusca, Kombi, Golf GTI, Karmann Ghia, VW SP2, etc. e ele também concebeu a estrutura deste “Lookbook”.


Ilustração: A foto abaixo foi tirada durante a vernissage da exposição de vários dos desenhos do “Lookbook No. 3 Volkswagen Artwork” realizada no AutoMuseum Volkswagen em Wolfsburg. Da esquerda para a direita: Jost Capito, Klaus Trommer – autor dos desenhos deste “LookBook”, Birgit Weigel, Hauke Wilkens e Eberhard Kittler – atual diretor do AutoMuseum e que entre o início de 2009 e o fim de 2012 foi diretor do setor VW Classic que faz parte do setor de comunicação corporativa da Volkswagen AG (Fonte Gero Gerewitz):

No tal “Lookbook No. 3 Volkswagen Artwork” aparecem vários desenhos de VW SP2 com o tal emblema da Karmann até na lateral direita (o carro real em questão tem o logo somente na lateral esquerda).


Ilustrações: Abaixo algumas destas ilustrações com o tal emblema-logotipo “alienígena” (sempre indicados por uma flecha vermelha), que fazem parte do plano, de acordo com o conceito básico deste “Lookbook” (repito: emitido pela Volkswagen contando com o aval do AutoMuseum), que é fornecer ideias para subfornecedores licenciados da Volkswagen alemã, portanto este erro poderá ser multiplicado numa proporção difícil de se prever; no primeiro dos desenhos se pode ver que o tal artista inovou mais ainda colocando um emblema KG do lado direito do carro (Fonte Michael Mörsinger):

Conclusão

Esta situação é desconfortável para todos que prezam pela história verdadeira do VW SP2, tanto os colecionadores deste carro na Alemanha com quem eu falei, quanto os colecionadores no Brasil, e há uma intenção destes grupos de ver este, digamos, “engano”, corrigido e a paternidade do VW SP2 ser devolvida a quem de direito, a saber a Volkswagen do Brasil, com a retirada do logotipo KG  e da plaqueta de fabricação daquele VW SP2. Bem como uma informação clara a ser publicada, pelo VW Classic, da história como ela realmente foi. Sem esquecer do “Lookbook No. 3 Volkswagen Artwork” que deveria ser recolhido e devidamente corrigido com a retirada do logotipo Karmann que aparece nas laterais das ilustrações de VW SP2.

Mas olhando para o Brasil, o importante é que se mantenha a história real de conhecimento de todos e evitar que estes ruídos históricos se estabeleçam por aqui. Espero que este esclarecimento contribua para isto.

(1) O crime de falsidade ideológica está previsto no artigo 299 do Código Penal, que descreve a conduta criminosa como sendo o ato de omitir a verdade ou inserir declaração falsa, em documentos públicos ou particulares, com o objetivo de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (no caso historicamente relevante).

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Alexander Gromow

Ex-Presidente do Fusca Clube do Brasil. Autor do livro EU AMO FUSCA e compilador do livro EU AMO FUSCA II. Autor de artigos sobre o assunto publicados em boletins de clubes e na imprensa nacional e internacional. Participou do lançamento do Dia Nacional do Fusca e apresentou o projeto que motivou a aprovação do Dia Municipal do Fusca em São Paulo. Lançou o Dia Mundial do Fusca em Bad Camberg, na Alemanha. Historiador amador reconhecido a nível mundial e ativista de movimentos que visam à preservação do Fusca e de carros antigos em geral. Participou de vários programas de TV e rádio sobre o assunto. É palestrante sobre o assunto VW com ênfase para os resfriados a ar. Foi eleito “Antigomobilista do Ano de 2012” no concurso realizado pelo VI ABC Old Cars.

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