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Puma Alface (…), o carro do Muhammad Ali

Indústria Automobilística Nacional

Puma Alface (…), o carro do Muhammad Ali

Roberto Nasser (*)

[dropcap]T[/dropcap]enho certeza, nunca existiu algum Ford Chicória, Porsche Almeirão, Citroën Repolho, coisas assemelhadas, … Tais designações nada combinam com marcas ou com o produto. Mas existe nestas terras um insólito Puma Alface. Raro, único, as chances de você tê-lo visto são reduzidíssimas, exceto para argutos passeadores por eventual e recente evento de veículos antigos no Rio de Janeiro, onde se abriga – sem circular – ou leitores deste Maxicar onde foi anunciado no passado.

Porque, então, um Puma chamado Alface? A meu ver, produto de conta simples: a soma do fato insólito, do descompromisso nacional em buscar informações, da capacidade de disseminar versões e ações desfundamentadas como se tivessem fé pública. Daí, consequentemente, o resultado sempre dará em estórias, versões, trocando a falta de essência histórica pelo ágil inventar. O Puma Alface é uma delas.

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A identificação do modelo

Conto. É confusão fonética. Referido Alface é o modelo Al Fassi, criado em 1987 sobre o modelo Puma-018, num projeto de internacionalização deste automóvel brasileiro. Primeiro movimento visando abonados compradores na Arábia Saudita. Após, o mundo.

Foi interessante pacote negocial e de produto, tendo como ponto de maior expressão e imagem o festejado e nascido Cassius Clay, 1942, e ora desaparecido sob o nome muçulmano de Muhammad Ali. Aventura automobilística triangular, ligando Curitiba, Pr, Brasil; Houston, Texas, EUA; e a Arábia Saudita.
Operação fugaz, mais lembrada pela confusão iletrada.

Como

Interessados na história de nossa indústria automobilística e seus produtos sabem, o Brasil sempre aplicou, sem artes ou imaginação, um cadeado aos portos, inibindo importações, em especial de automóveis, ícone, mito e referência entre itens de consumo. A ideia vesga continua, desprezando consequências favoráveis de extrema importância, como a competição do mercado e a competitividade nos custos. Sem produtos estrangeiros a futucar o desenvolvimento e atualização dos nacionais, para satisfazer a clientes em busca de automóveis diferentes da meia dúzia de três ou quatro modelos aqui existentes, opção foi aviar fórmula de juntar carroceria de uma empresa; plataforma mecânica de outra; colher produto final como veículo especial, diferente, de nicho. Uma das empresas de bons resultados nesta área foi a Puma, produto da união de quatro amigos para fazer uma carroceria leve e aerodinâmica, apto a transformar um carrinho pau para toda obra em provável vencedor das corridas onde alinhava. Para lembrar, no estágio inicial empregava a curiosa razão social Lumimari, fabricando carroceria em compósito de fibra de vidro reforçada com plástico para vestir plataforma encurtada do Belcar, o sedã 4 portas feito pela Vemag, aqui produzindo os veículos DKW Auto Union (novembro 1956 – setembro 1967). Tal simpático carrinho de linhas italianadas se chamava GT Malzoni – referência ao seu criador, o advogado-fazendeiro-industrial Genaro – Rino – Malzoni.
A Volkswagen assumiu a Vemag, acabou com a produção dos DKW/Auto Union, e passou a disponibilizar a plataforma da marca, com motor traseiro. A Lumimari havia, meses antes lançado versão melhorada do GT Malzoni, batizando-o com a nova razão social, Puma, mantendo a mecânica Auto Union, 1,0 litro, em ciclo de dois tempos. Produto fugaz, durou um ano em 125 unidades.

A mudança na arquitetura mecânica exigiu criar nova carroceria, dando origem ao Puma GT, agora com motor VW 1,5 litro.

Atrevida, exportou para os EUA, Europa, teve linha de montagem na África do Sul, fez-se conhecida como produtora de esportivo charmoso e barato. Foi bem até a década de ’80, quando por condições internas e externas inviabilizou-se, saindo do negócio, cedendo o de fazer, direitos e nome à Araucária, empresa paranaense conduzida por Rubens Maluf.

Novo empreendedor sanou as condições, mas os problemas maiores estavam muitos degraus acima do chão de fábrica. O Brasil vivia a Década Perdida. Sua economia às quedas e saltos, estiolou a esperança de o primeiro governo pós militar fizesse o país sorrir. O quadro era outro, vivia-se sem rumo e objetivo, as mazelas eram tentativamente resolvidas com seguidos planos econômicos, o governo Sarney contemporizava, à base do deixa rolar para o tempo decidir. A queda do mercado consumidor foi elevada, as vendas dos veículos novos se reduziram, e ao final da década – e do Governo Sarney – quase todos os empreendedores com pequena produção de carros especiais chegaram ao fim. A Puma tomava este caminho triste.

Em 1986, último ano sob a razão social de Araucária, não há produção registrada, e a empresa desprezara importante bandeira institucional, desfiliando-se da Anfavea, a associação dos fabricantes de veículos. Perdera o respeitado rótulo de fabricante, tornara-se negócio pequeno.

Começa

Kevin Haynes, ágil representante da Puma nos EUA, preocupado com o fenecer do negócio, era amigo do advogado do Campeão de Boxe Muhammad Ali, aposentado como pugilista vencedor, porém sempre interessado em novos negócios. Com alguns raciocínios e contatos montaram fórmula simples e prática: Ali viria ao Brasil; combinaria o negócio com a Puma; criariam versão a partir do existente. Quanto ao produto seria exportado aos EUA onde receberia motor, transmissão e freios do Porsche 911. Revisto e de rendimento melhorado, mandado à Arábia Saudita.

Não era versão, mas produto. Teve sobrenome adicional: seria Puma Al Fassi – sobrenome de Muhammad Al Fassi. Sheik Al Fassi. No romantismo superando a verdade, promovendo e dispensando referências de fato, dando mais importância à estória e relegando a história, era referido como Sheik na Arábia Saudita. Mas não tinha o título, embora gastasse e posasse como se o fosse.

Nem era saudita, porém um marroquino cuja irmã havia se casado com o Príncipe Turkin bin Abdul Aziz, irmão do Rei Saudita Fahd al Saud. Al Fassi se transformou no gestor financeiro do cunhado, mudou-se para a Arábia Saudita, e decolou com grande empuxo. No negócio Puma incorporou seu nome familiar ao produto, onde foi aposto outro pedúnculo: by Muhammad Ali, aval do pugilista com renome mundial.

Para frente

Felipe Nicoliello, editor do bom sítio Pumaclassic, em bom texto confirma a operação. Muçulmano Ali, então aos 45, veio ao Brasil com turma especializada: seu advogado judeu Richard Hirschfield; um consultor de negócios; e um engenheiro de automóveis. A operação demandava ações rápidas nos três setores. E resolver as coisas de maneira acelerada e definitiva fazia parte da personalidade do Campeão.
Parte legal, moldaram uma companhia, The Ali Vehicle Industry, para formar joint venture com a fabricante do Puma, a Araucária Veículos Ltda., e uma importadora dos EUA, a Inter American Ltd.

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Interior refinado, com madeira

Negócio andou rápido: em 21 dias definiram as partes legais, operacionais e o futuro. Do básico, queriam um automóvel exclusivo, proposta de viabilização impossível pela ausência de tempo ou orçamento para a quase paralisada Araucária investir em novo produto. Assim, tomou-se por base o P-018 – último produto da pioneira Puma, feito em acreditadas 40 unidades. Para caracterizá-lo como novidade, mudanças externas com a criação de moldes gerando carroceria sutilmente mais larga; com novos grupos ópticos frontal – incluindo faróis retangulares – e traseiro; alteração na tampa e painel posteriores; e tentativo refinamento do habitáculo, com aposição de placas de madeira ao painel de instrumentos e sua lateral.

Trabalho árduo, a partir de desenhos sugestivos as partes iam sendo moldadas; componentes procurados no comércio; ferramentas sendo construídas, adaptações viabilizadas. A realidade superava em velocidade os projetos finais.

Quanto ao produto, definiu-se pré série de apenas duas unidades. Tempo curto, mas de grandes esperanças: Maluf e seus três sócios apostavam todos os meios, vendo na iniciativa a sobrevivência econômica e a continuidade do sonho. Um recorde para pequena empresa em dificuldade.

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Muhammad Ali, 1987, em shopping curitibano.      (foto: João Bruschz – Gazeta do povo)

Conta a paranaense Gazeta do Povo Ali dispendeu o período em Curitiba com dedicação total, do princípio ao fim do projeto, dando expediente na pequena fábrica, sugestões, acompanhando até a exportação à Arábia Saudita. Para estas pulou-se o estágio norte-americano de substituição do grupo moto propulsor, mantendo o original do projeto, motor boxer de 4 cilindros contrapostos, 1,7 litro de deslocamento, em torno de 75 cv de potencia, agregado a caixa de transmissão de 4 velocidades e semi eixos articulados. Era o equipamento herdado à Variant II.

A Araucária respirou esperança ante o projeto inicial de vendas, números nunca aclarados ante os citados pelo noticiário de época, situado entre 400 a 1440 unidades. Para este, calculado o preço unitário de exportação em US$ 25 mil equivaleria a um faturamento de US$ 36 milhões! Na prática o insólito projeto seria capaz de viabilizar o futuro.

Marcha a ré

Se a presença de Ali e seus ativos executivos, definindo no meio ambiente paranaense de solo fértil e ar úmido a estrutura jurídica e comercial, formação de empresa, linhas do projeto, construção de moldes e da pioneira pré série, a velocidade estancou quando as combinações ficaram dependentes das providências a serem tomadas por Al Fassi. Aparentemente a mudança do meio ambiente, agora o piso arenoso e o sol forte da Arábia Saudita, desidratou expectativas.

Polêmico Muhammad Al Fassi, residindo na Arábia Saudita, aparentemente era meio destituído de executividade, assim como sua assessoria direta de 75 aspones. Previsível. Seu vigoroso salto em status, renda e poder absorviam muito de seu tempo em deslocamentos e dedicação de consumo. Sua média anual de gastos, apenas em roupas, acredite, nivelava-se à do pessoal do Petrolão: uns US$ 2M/ano – na década de ‘80. Aparentemente para Al Fassi, a montagem do negócio com o famoso Ali estava mais para evento de mídia e pela vaidade de ter um automóvel com seu nome, que ganhar com trabalho dedicado na comercialização de unidade por unidade dos Puma Al Fassi by Muhammad Ali.

Imobilidade, falta de foco, desinteresse, seja qual tenha sido a verdadeira razão, à época Al Fassi aparentemente resolveu cometer um ato situado sobre a fina linha a separar a insanidade e o brilho oportunista: declarou apoio ao ditador Sadam Hussein.

Resultado prático, repulsa mundial, e a família do Rei Fadh, correu com ele para fora do país, mudando-se para os EUA com suas quatro mulheres, filhos e boa parte de bens móveis, incluindo dois Boeing 707. Suas contas foram bloqueadas, o cunhado arcava, episodicamente, com seus gastos. Teve vida curta, foi-se aos 50 anos, em 2002.

Fim

A esperança transformou-se em fumaça, o projeto perdeu fôlego e interesse, e a falta de substância do futuro agravou a situação da Araucária, cujo trêfego caixa fora penalizado pelo mercado ruim, pelo descapitalizar com investimentos para modificar o produto, ampliar estrutura fabril, estocar para atender à quase-futura encomenda. Tropicou seriamente e foi comprada pelo fabricante de auto peças Nívio de Lima, transformando-a em Alfa Metais, reatando produção. Lima faleceu precocemente, cessando a produção do Puma.

A total mudança de vida de Al Fassi, fez fenecer o ponto terminal do processo, o mercado de vendas dos Puma com seu nome. E Ali refluiu, cancelando o negócio com a Puma e, até, paralela e desconhecida iniciativa, com a gaúcha Aldo Auto Capas, fabricante do também pretensamente esportivo Miura. Projeto seria outro pois os Miura utilizavam motor diferente, quatro cilindros em linha, 1,6 litros, equipamento dos Fox – aqui Voyage e Paraty – iniciando ser exportados para os EUA, com rede de revendedores e larga disponibilidade de equipamentos para dinamizar performance.

Último

Da contida pré série do Puma Al Fassi, derradeira carroceria teve construção sugerida pelo advogado Hirschfield, ad cautelam, falou em latim, para não deixar dúvidas, visava estar preparado para suprir qualquer falha no acelerado processo, recebeu a plaqueta OO3. Conta Nicoliello, ficou estocada, numa garagem entre 1987 até 2009, fora dos olhos curiosos, de existência creditada à soma de estórias de carros desconhecidos. 32 anos para Rubem Rossato, então diretor da Araucária e partícipe dos esforços para viabilizar o negócio com Ali, decidir completá-la. Co-optou ex-funcionários do projeto, para finalizá-la como foram as duas primeiras e exclusivas unidades exportadas para a Arábia Saudita, transformando-a em raridade.

Da dupla de Al Fassi exportados, eflúvios do Oriente sugerem existir um remanescente. Será?
Quanto vale? Valerá o combinado entre vendedor e comprador. Não se iguala à cotação de um produto igualmente raro e estelar, mas tão somente o de uma raridade. Não foi um automóvel inovador do qual se tiraram poucas cópias – como as cinco FNM Onça ou as quatro do IBAP Democrata -, mas um exemplar tornado raro pela quase exclusividade.

Em termos de design pode ser absorvido pela nova traseira; criticável pelo peso visual da relação pesada entre área de madeira e de plástico no painel. Todavia, se há dúvidas nestes pontos, a aparência frontal arregimenta unanimidade: é feia. Os faróis retangulares foram apostos apenas para caracterizar o modelo, sem o compromisso de falar a linguagem estética do Puma, criada 20 anos antes e bem sedimentada pelo mercado.
Vale a pena o investimento? Sim, é quase exclusivo e sua esquisitice estética é colecionável.

 

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(*) Jornalista, Advogado, Curador do Museu Nacional do Automóvel – Brasília, DF

 

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