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A Detroit brasileira

A Detroit brasileira

*Felipe Bitu

[dropcap]S[/dropcap]ou paulistano da Lapa, mas fui criado entre o histórico bairro do Ipiranga e a proletária São Bernardo do Campo: o contato diário com o Monumento à Independência e com o Museu Paulista fez com que eu desenvolvesse essa veia romântica e nostálgica, intrinsicamente ligada ao estudo de épocas e costumes passados, entre os quais se inclui o automóvel e sua indústria.

Aos vinte e poucos anos de idade, o gosto pelo assunto me rendeu uma transferência compulsória para o Serviço de Memória e Acervo de São Bernardo do Campo, setor responsável pela preservação e documentação de papéis, documentos, objetos e qualquer material capaz de resguardar a história de São Bernardo do Campo, a Capital do Automóvel.

Nossa via principal, a rua Marechal Deodoro, integra o antigo Caminho do Mar, rota que se iniciava na Avenida Paulista, cruzava a Vila Mariana, o Ipiranga e a Vila das Mercês, chegando a São Bernardo (ainda não era “do Campo”) no bairro dos Meninos, atual distrito de Rudge Ramos. O trecho de serra até Santos começava a poucos quilômetros desta antiga Vila.

A cidade quase sucumbiu com a chegada da São Paulo Railway: a estrada de ferro que ligava Santos à Jundiaí cruzava Cubatão, a vila de Paranapiacaba (Santo André), Rio Grande da Serra, Ribeirão Pires, Mauá, o centro de Santo André e São Caetano do Sul. Por questões logísticas, São Bernardo foi excluída da riqueza e progresso resultantes da exportação do café.

A estagnação perdurou até o século XX: preservado em parte por Nicolau José de Campos Vergueiro (filho do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro), o Caminho do Mar voltou aos tempos de glória por intermédio do Dr. Arthur Rudge Ramos, delegado de polícia que tomou a iniciativa de reabrir a antiga rota para um novo modelo de progresso: o automóvel.

Entre 1913 e 1916, a “Estrada do Vergueiro” foi estabilizada, recebendo pavimento de macadame e sistema de drenagem. Surgia ali o embrião da SP-148, a tão querida “Estrada Velha de Santos”. Os automóveis resgataram a economia de São Bernardo do Campo, baseada no comércio e prestação de serviços (oficinas, borracharias, restaurantes, etc).

A empreitada rendeu ao Dr. Rudge Ramos o cargo de Diretor do Serviço de Trânsito da capital: sua filha Lavínia (homenageada pela Faculdade de Engenharia Industrial ao batizar o esportivo X-3 em 1970) casou-se com Lauro Gomes de Almeida, um importante executivo mineiro responsável pelo salto industrial de São Bernardo na década de 1950.

Habilidoso, Lauro Gomes elegeu-se prefeito em 1951 e soube conduzir a agitação provocada pela emancipação: desde 1944 São Bernardo agora era “do Campo”, sofrendo várias represálias políticas e econômicas de Santo André. Para piorar, a inauguração da Via Anchieta em 1947 tornou a rua Marechal Deodoro em uma via pacata e sem movimento.

São Bernardo já mostrava seu potencial através da Varam Motores e da Brasmotor: a primeira montava caminhões Nash e automóveis Fiat enquanto a segunda foi responsável pela montagem dos primeiros Fuscas, antes mesmo de Bobby Shultz-Wenk organizar o escritório oficial da Volkswagen no bairro do Ipiranga.

O Lauro não trouxe apenas a Volkswagen: também vieram Willys-Overland, Mercedes-Benz, Karmann, Toyota, Simca e Scania-Vabis. Seus diretores se deparavam com um intenso tráfego de automóveis que subiam e desciam a rua Marechal Deodoro: eram funcionários públicos municipais em seus carros particulares, com a gasolina paga pelo prefeito.

São Bernardo deveria parecer moderna, agitada, pronta para atrair investimentos: tornou-se efetivamente a Capital do Automóvel após a criação da Escola Técnica Industrial (hoje Escola Técnica Estadual, da qual Lauro Gomes é o patrono) e do SENAI, indispensáveis na formação de mão de obra qualificada para a indústria automobilística.

Residi em São Bernardo por felizes 25 anos: a metrópole tornou-se berço da elite sindical que controla o país e responde pelo sexto maior PIB do estado de São Paulo. Ao contrário da Detroit original, é o município mais rico do ABC Paulista: seremos eternamente gratos aos Fuscas, Chambords, Jeeps, Darts, Bandeirantes, Corcéis e tantos outros que contribuíram para o nosso progresso.

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bidu_creditos*Felipe Bitu é graxeiro amador e articulista. Gosta de motores a vapor, carburadores, platinados e veículos terrestres, náuticos e aéreos capazes de acumular energia cinética. É colunista do Best Cars Web Site e responsável pelas seções “Grandes Carros” e “Grandes Brasileiros” da revista Quatro Rodas.

 

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